A interpretação da discriminação pessoal grave na desfiliação partidária como cláusula aberta
Jacob Paschoal Gonçalves da Silva1
Resumo
O presente artigo coloca como ponto central a justa causa sobre a grave discriminação pessoal, conteúdo de cláusula aberta que foi moldada pela atual jurisprudência dos tribunais regionais eleitorais e do Tribunal Superior Eleitoral.
Palavras-chave: Filiação partidária; Desfiliação partidária; Justa causa; Grave discriminação pessoal; Resolução nº 22.610/2007 do TSE; Lei dos Partidos Políticos.
Em primeiro, é necessário tecer comentários sobre a filiação partidária insculpida no texto constitucional. A Constituição Federal, em seu artigo 17º, §1º, destaca que é assegurada aos partidos políticos autonomia para definição de suas estruturas internas.
Nesta seara, a Carta Magna elevou a filiação partidária a requisito substancial do sistema político brasileiro. Igualmente, preleciona Gilmar Ferreira Mendes: “no sistema eleitoral proporcional adotado no Brasil, os partidos políticos detêm um monopólio absoluto das candidaturas”.2Assim, se um candidato vier a ser eleito a mandato eletivo por determinada agremiação e buscar sua desfiliação, nos termos do entendimento mencionado, poderá incorrer na extinção de seu mandato, tendo em vista que o referido cargo pertence ao partido e não ao candidato. Outrossim, o candidato dever ser fiel ao partido, durante as eleições e durante seu mandato. Portanto, a Lei Maior assegura a vedação ao “transfuguismo partidário”sem justa causa, pois, em tese, tal prática poderia corromper o processo democrático brasileiro.
Na esteira do entendimento ora fixado, a Lei nº 9.096/1997 (Lei Federal dos Partidos Políticos) regula a filiação partidária em âmbito infraconstitucional. Assim dispõe o artigo 3º da citada lei. Percebe-se que o legislador positivou no artigo 3º a citada autonomia partidária na seara infraconstitucional.
Pois bem. É cediço que a possibilidade de desfiliação partidária no curso do mandato eletivo ainda é tema conturbado na jurisprudência dos tribunais, uma vez que é mister existir uma justa causa, pois a desfiliação partidária pode vir a acarretar diversos transtornos à representação partidária legislativa. O Pretório Excelso (STF), no julgamento do Mandado de Segurança nº 27.938, entendeu que a desfiliação partidária durante o exercício do mandato eletivo, nos casos de vacância posterior, pertence ao partido originário.3
A norma central que regula o que seria uma justa causa dentro da Justiça Eleitoral para possibilitar a desfiliação foi editada pelo TSE, Resolução nº 22.610/2007, que regula o processo de infidelidade partidária, destacando-se a justa causa advinda da grave discriminação pessoal, uma vez que se trata de norma que abrange inúmeros tipos de situações que serão delimitadas pelos tribunais eleitorais.4
Veja que Tribunal Superior Eleitoral preocupou-se em normatizar expressamente o que seria uma justa causa, exatamente para dar interpretação uniforme nos julgamentos. Eis que o rol é exemplificativo5, sendo amplas as interpretações, mas devendo haver limites, normalmente encontrados na literatura jurídica e nas jurisprudências.
Percebe-se que, ao interpretar a discriminação pessoal em razão do rol ser aberto, os julgadores devem valorar e definir pelo menos objetivamente um molde que poderia ou não ter essa tipificação. Insta salientar também que a palavra “grave discriminação pessoal”, que ocasionaria uma justa causa, já foi interpretada de maneira brilhante pelo então presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE/SP), Dr. Walter de Almeida Guilherme, que a denominou como cláusula aberta, melhor dizendo, conceito jurídico indeterminado: [...] “No que diz respeito à hipótese de justa causa denominada ‘grave discriminação pessoal’, constante do art. 1º, § 1º, inciso IV, da Resolução TSE nº 22.610/2007, torna-se necessário tecer algumas considerações [...]”.
Infere-se, da leitura da expressão, que não basta que exista discriminação, pois ela deve ser, concomitantemente, de natureza pessoal e grave. Na acepção jurídica do termo, discriminar significa o tratamento pior ou injusto a outrem em virtude de características pessoais, consubstanciando intolerância e/ou preconceito. Implica a exclusão e/ou restrição em razão de raça, cor, sexo, idade, trabalho ou credo religioso. Por outro lado, depreende-se da leitura da Resolução-TSE nº 22.610/2007, da Consulta nº 1.398 do colendo Tribunal Superior Eleitoral e dos mandados de segurança nºs 26.602, 26.603 e 26.604, julgados pelo colendo Supremo Tribunal Federal, que a expressão “grave discriminação pessoal” abarca também situações nas quais se verifique de forma inequívoca que a permanência do mandatário na sua agremiação é insustentável em virtude da ocorrência de fatos que consubstanciem segregação ou preterição por motivos não razoáveis.6
Assim, coloca o insigne desembargador que o caminho para interpretarmos o conceito em comento se concentra na formula onde há a cumulatividade do ato de discriminar de natureza pessoal e grave de forma. Essa pessoalidade implica na exclusão e/ou restrição em razão de raça, cor, sexo, idade, trabalho ou credo religioso.
Contudo, esse julgado vai além, destacando uma cláusula geral e residual que aceita situações fora das hipóteses acima elencadas, desde que a grave discriminação pessoal abarque também situações nas quais se verifique de forma inequívoca que a permanência do mandatário na sua agremiação é insustentável em virtude da ocorrência de fatos que consubstanciem segregação ou preterição por motivos não razoáveis, como uma situação de inexigibilidade de conduta diversa. Esse entendimento foi delineado na Consulta nº 1.398 ao colendo Tribunal Superior Eleitoral.
Com base nesse entendimento, amplia-se o conceito justa causa, mas, paralelamente, o julgador deverá analisar outros conceitos, que deverá considerar na desfiliação por discriminação pessoal grave, como o princípio da boa-fé do candidato, prova concreta de discriminação. No entanto, deve fechar a extensão da interpretação à formula apresentada, cumulando o ato de discriminar de natureza pessoal à luz do esposado e da prova da gravidade.
Isso porque, mesmo numa cláusula aberta, deve haver parâmetros objetivos e limites para a interpretação, ainda mais quando lidamos com a capacidade eleitoral passiva ou com a elegibilidade, uma das espécies de direitos políticos, sendo este um direito fundamental estampado em nossa Constituição garantista.
Referências
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9ª edição revista e atualizada. Saraiva, 2014, p. 1.132.
1 Ex-Oficial de Registro Civil no Estado de São Paulo. Procurador-Chefe da Procuradoria de Licitações e Contratos da Secretaria de Assuntos Jurídicos de Município de Guarulhos. Mestrando em Direito do Estado pela PUC/SP. Especialista em Direito Eleitoral e Processual Eleitoral pela EJEP-TRE/SP. Advogado e consultor.
2 MENDES; BRANCO, 2014, p. 1.132.
3 MS nº 27938 MC, Relator: Min. Joaquim Barbosa, julgado em 29.4.2009, publicado em DJE-084, divulgado em 7.5.2009, publicado em 8.5.2009.
4 Art. 1º O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa. § 1º Considera-se justa causa; [...] IV) grave discriminação pessoal.
5 Petição nº 156, Acórdão nº 2886, de 16.3.2010. Relator: Evandro Luis Castello Branco Pertence, publicado em DJE - Diário de Justiça Eletrônico do TRE/DF, Volume 13, Tomo 58, data 5.4.2010, p. 2.
6 DIV n° 1853. Acórdão nº 166072, de 18.12.2008. Relator: Walter de Almeida Guilherme. Publicação: Diário Oficial do Estado (DOE), data 16.1.2009, página 1.