Condenação em ação de improbidade administrativa como causa de inelegibilidade

Vera Lúcia Feil Ponciano1

 

O art. 1º, inciso I, alínea l, da Lei Complementar nº 64/1990, dispõe que são inelegíveis para qualquer cargo:

[...] os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena. 

Desse modo, condenação nesse sentido é causa de inelegibilidade, competindo à Justiça Eleitoral verificar, no momento processual adequado (na impugnação ao registro de candidatura, por exemplo), se a decisão condenatória na ação de improbidade administrativa: a) transitou em julgado ou foi proferida por órgão judicial colegiado; b) decorreu de ato doloso; c) condenou o responsável pela conduta de lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.2

A aplicação do terceiro requisito causou polêmica na doutrina e jurisprudência, que foi resolvida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), fixando o entendimento de que, para a incidência dessa causa de inelegibilidade, é necessário que a condenação pela prática de ato doloso de improbidade administrativa implique, cumulativamente, lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.3

Entretanto, no momento do reconhecimento da aludida causa de inelegibilidade, surge outra questão polêmica: a Justiça Eleitoral pode ampliar a condenação com base apenas na fundamentação, analisar novamente os fatos e as provas quando não há a cumulatividade descrita no dispositivo da sentença ou do acórdão oriundo da Justiça Comum (federal ou estadual)?

O TSE, no julgamento do Recurso Ordinário nº 380-23,4 entendeu da seguinte forma:

Deve-se indeferir o registro de candidatura se, a partir da análise das condenações, for possível constatar que a Justiça Comum reconheceu a presença cumulativa de prejuízo ao erário e de enriquecimento ilícito decorrente de ato doloso de improbidade administrativa, ainda que não conste expressamente na parte dispositiva da decisão condenatória.

A mesma Corte, no Recurso Especial Eleitoral nº 154.144,5 entendeu que:

Não cabe à Justiça Eleitoral proceder a novo enquadramento dos fatos e provas veiculados na ação de improbidade para concluir pela presença de dano ao erário e enriquecimento ilícito, sendo necessária a observância dos termos em que realizada a tipificação legal pelo órgão competente para o julgamento da referida ação.

Considerando esses dois precedentes, passamos a analisar as regras constitucionais e legais pertinentes, que devem servir de norte para a solução da controvérsia.

A primeira regra diz respeito aos princípios da legalidade e da tipicidade.

A Lei nº 8.429/1992 regulamentou o § 4º do art. 37 da Constituição Federal de 1988. Prevê essa lei três ordens de atos de improbidade: a) os que importam em enriquecimento ilícito do agente (art. 9º); b) os que causam lesão ao patrimônio público/dano ao erário (art. 10º); e c) os que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11). A cada uma das espécies foram atribuídas penalidades/sanções próprias, conforme seu art. 12.

As sanções no Direito Administrativo estão adstritas aos princípios da legalidade e da tipicidade, como consectários das garantias constitucionais.6 As condutas e penalidades da Lei nº 8.429/1992 são prescrições dotadas de tipicidade semelhante ao princípio da tipicidade do Direito Penal.7

Considerando esses dois princípios, surge a segunda regra, que se refere ao tópico da sentença/acórdão em que deve constar a condenação nos tipos e a aplicação das sanções, ou seja, se basta constar na fundamentação ou se precisa, necessariamente, constar expressamente no dispositivo da sentença ou acórdão.

A resposta mais adequada indica que os princípios da legalidade e da tipicidade somente serão observados se no dispositivo constarem expressamente os tipos legais violados e as sanções respectivas,8 pois o art. 469, inciso I, do Código de Processo Civil, prescreve que não fazem coisa julgada: “os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença”.

Dessa forma, somente faz coisa julgada material a tipificação da conduta e a aplicação da respectiva sanção/penalidade que estejam descritas no dispositivo do título judicial. A fundamentação ou os motivos não são alcançados pela coisa julgada material.9

Portanto, o pressuposto para a consideração da causa de inelegibilidade é que tenha havido condenação pela Justiça Comum, pois a Justiça Eleitoral não é competente para condenar por ato de improbidade administrativa, sob pena de violar os limites objetivos da lide (CPC, art. 468 – quando ainda não transitado em julgado o título judicial) ou da coisa julgada (CPC, arts. 467 e 469) e usurpar a competência do órgão judiciário comum. Além disso, se não houve condenação no dispositivo do título judicial, a Justiça Eleitoral estaria processando e julgando novamente pelos mesmos fatos, o que é vedado, inclusive pelo art. 474 do CPC, que trata da eficácia preclusiva da coisa julgada.

Considerando tais questões, surge a terceira regra, relacionada a princípios constitucionais, porquanto, não sendo observado o dispositivo do título judicial oriundo da Justiça Comum, a Justiça Eleitoral violaria os princípios da legalidade e da tipicidade, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa e do juiz natural.10 Em suma: condenaria novamente com base nos mesmos fatos.

Nesse contexto, parece incabível que a Justiça Eleitoral faça um novo exame da causa julgada pela Justiça Comum para ampliar a condenação com base apenas na fundamentação do acórdão, sem que tenha constado a conduta típica (de forma cumulativa) e a sanção no dispositivo, julgando novamente os fatos e valorando as provas, com o objetivo de afirmar que o réu na ação de improbidade administrativa também praticou conduta da Lei nº 8.429/1992, que não consta do dispositivo, a fim de reconhecer a causa de inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, alínea l, da Lei Complementar nº 64/1990.

 



1 Juíza federal da 6ª Vara de Curitiba/PR. Juíza membro do TRE/PR – 2014/2016. Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC/PR. Autora de diversos artigos jurídicos e dos livros: Crimes de moeda falsa. Curitiba: Juruá, 2000; Manual de Processo Civil para a 1ª instância. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2007; e Justiça Federal: organização, competência, administração e funcionamento. Curitiba: Juruá, 2008.

2 Lei nº 8.429/1992, arts. 10º e 9º, respectivamente.

3 TSE. Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 7.154. Relator Min. Henrique Neves da Silva. DJE, Tomo 68. Data 12.4.2013, página 59-60.

4 Relator Min. João Otávio de Noronha, publicado em sessão do dia 12.9.2014.

5 Relatora Min. Luciana Lóssio. DJE, Tomo 168, data 3.9.2013, p. 80.

6 OSÓRIO, Fábio Medina Osório. Direito Administrativo sancionador, RT, 2000. e STJ. REsp 879360. DJU 11.9.2008.

7 DI PRIETO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24. Ed. São Paulo: Atlas, 2010.

8 Lei nº 8.429/1992, arts. 9º, 10º e 12.

9 STJ. REsp nº 1298342/MG. Rel. Min. Sidnei Benetti. DJE 27.6.2014.

10 CF, art. 5º, II; CF, art. 5º, LIV; CF, art. 5º, LV; CF, art. 5º, LIII, respectivamente.