O Poder Judiciário e a lentidão legislativa na seara eleitoral

Lucas do Monte Silva1

 

A sobreposição entre o direito e a política no Estado democrático de direito não é um fenômeno recente. Cada vez mais, o jurídico está se tornando político, e o político está se tornando jurídico. Esse fenômeno ocorre, principalmente, nos países em que se verifica a crise de representatividade, nos quais o Poder Legislativo, devido a seu caráter vagaroso, não responde de forma satisfatória à população, isto é, não responde de forma eficaz e adequada aos anseios e desejos da sociedade.

Em tais países, inclusive no Brasil, o Poder Judiciário acaba assumindo uma nova função: a de extrair normatividade, supremacia e força normativa da Constituição, com o objetivo de responder de forma adequada às necessidades da população e do contexto econômico e político. Tais características, por sua vez, são extraídas da Constituição, primariamente, pelos 11 ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal (STF), jurisdição constitucional que faz o controle de constitucionalidade das leis e normativas promulgadas pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo.

Essa situação pode ser observada de forma clara no exercício da jurisdição constitucional na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº 4.650, que trata da proibição de financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas. O STF, diante da demora legislativa, em razão da inatividade do Estado para cumprir o dever constitucional de legislar, se apresenta como o órgão responsável por suprir o vácuo legislativo.

Nesse sentido, Clève destaca que:

Não é apenas a ação do Estado que pode ofender a Constituição. Deveras, a inércia do Poder Público e o silêncio legislativo igualmente podem conduzir a uma modalidade específica de ilegalidade definida, pelo direito contemporâneo, como inconstitucionalidade por omissão.2

No entanto, não há uma ausência total de proposição legislativa, mas sim uma demora legislativa que, seja por motivos institucionais, seja por motivos políticos, não prioriza pautas de maior importância na seara eleitoral, como a reforma política.

Nesse contexto, o STF, diante da inertia deliberandi, caso seja provocado, nunca ex officio, deverá responder ao pleito, mesmo que seja para indeferi-lo, com base no princípio da separação dos poderes. Afinal, “ao cidadão importa tão somente a concretização de suas expectativas e não os problemas de quem afinal tem legitimidade democrática para concretizá-las.”3

Na esfera doutrinária, essa atuação judicial é criticada, sobretudo, porque o Judiciário não seria o poder legítimo, democrática e juridicamente, de modo que se estaria diante de um ativismo judicial. Tal fenômeno, segundo Streck e Morais,4 ocorre quando “os juízes substituem os juízos do legislador e da Constituição por seus juízos próprios, subjetivos, ou, mais que subjetivos, subjetivistas (solipsistas).”

Tal entendimento não está previsto no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo sob a óptica da Constituição da República de 1988. Ora, o STF, como órgão-cúpula do Poder Judiciário, guardião da Constituição, tem o dever de regular as regras do jogo democrático, sendo, assim, possível sua atuação constitucional de preenchimento de lacunas, por meio de analogias ou de determinação de prazos ao Poder Legislativo, para elaboração de legislação sobre o tema do caso em análise.

Vislumbra-se que percepção diversa trataria a seara eleitoral como uma esfera independente, intransponível pelos valores e pela hermenêutica constitucionais, cuja inteligência não tem razão no contexto pós-positivista do direito brasileiro.

O direito não é um fim em si mesmo, o direito deve ser elaborado e executado tendo como finalidade o ser humano, o verdadeiro objetivo da ciência jurídica, buscando criar maneiras de facilitar e garantir a segurança jurídica, bem como a justiça e o bem comum, para a sociedade, como um todo. Assim, o direito não deve ser visto como um mero ordenador da sociedade, tal como era na fase liberal, nem como promovedor ilimitado,5 tal como na visão social (welfare state). Ele deve ser um instrumento, conforme o Estado democrático de direito, transformador da realidade (um plus normativo em relação às fases anteriores),6 ou melhor, instrumento de emancipação social.

É evidente que a linha tênue entre a inatividade e a atividade letárgica, diante da própria complexidade da legislação, merece ser considerada na avaliação do caso concreto. Essa identificação não é fácil, mas o Poder Judiciário tem a prerrogativa constitucional de julgar os hard cases;senão estar-se-iam violando princípios, explícita e implicitamente, da Constituição da República de 1988, como os princípios constitucionais do Estado democrático de direito e da República (art. 1º, caput), da cidadania (art. 1 º, inciso II), da soberania popular (art. 1º, parágrafo único), da igualdade (art. 5º, caput), da proteção da normalidade e da legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico (art. 14, § 9º).



1 Acadêmico do curso de Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Membro da equipe editorial da revista Direito e Liberdade, publicada pela Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte (ESMARN).

2 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 51.

3 GARCIA, E. Jurisdição constitucional e legitimidade democrática: tensão dialética no controle de constitucionalidade. Revista da EMERJ, v. 11, n. 43, p. 29, 2008.

4 STRECK, L. L.; MORAIS, J. L. B. OAB in foco, Uberlândia, ano 4, n. 20, p. 15, ago./set. 2009.

5 SARMENTO, D. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010, p. 26.

6 STRECK, L. L. Hermenêutica, neoconstitucionalismo e “o problema da discricionariedade dos juízes”. Anima - Revista Eletrônica do Curso de Direito da OPET, Curitiba, n. 1, p. 383-413, 2009.