Da bengala ao funeral: um réquiem da independência do Judiciário brasileiro

Bruno Bodart1

Carlos Eduardo Frazão2

 

Em 7 de abril de 2015, foi promulgada a Emenda Constitucional (EC) nº 88/2015, fruto da PEC nº 457/2005, mais conhecida como PEC da Bengala. O intuito da reforma constitucional seria apenas elevar a idade para a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), dos tribunais superiores (STJ, STM, TSE, TST e CNJ)3 e do Tribunal de Contas da União (TCU) ao patamar de 75 anos.

Há muitos argumentos favoráveis e contrários a essa medida, mas não serão objeto deste breve ensaio, cujo objetivo é analisar a parte final do art. 2º da EC nº 88/2015: “nas condições do artigo 52 da Constituição Federal”. O dispositivo, que já é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) nº 5316, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), tomou de surpresa a comunidade jurídica por ter sido pouco noticiado no curso do processo de aprovação da emenda. Por isso, parece apropriado tecer algumas reflexões sobre a sua compatibilidade com a ordem constitucional.

Primeiramente, é necessário contextualizar o debate. A emenda alterou o corpo permanente da Constituição para possibilitar, na forma a ser definida por lei complementar, a aposentadoria compulsória aos 75 anos. Porém, até o advento da referida lei complementar, a emenda dispôs que os juízes do STF, dos tribunais superiores e os membros do TCU aposentar-se-ão, compulsoriamente, aos 75 anos de idade, “nas condições do art. 52 da Constituição Federal”. Em razão dessa parte final, cujo objetivo pode não estar claro em uma leitura apressada, o novo art. 100 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) submete os atuais ministros a sabatina perante membros do Senado Federal (CRFB/1988, art. 52, III, a e b). O ponto nevrálgico da controvérsia consiste em saber se essa nova sabatina para a manutenção do cargo se revela ou não compatível com a Constituição de 1988.

A questão não passou despercebida no Congresso Nacional, pois vozes do próprio Parlamento questionaram a fixação dessas condicionantes: ao apresentar seu “voto em separado”, em 19 de outubro de 2005, quando da tramitação da PEC nº 457/2005, o deputado Luiz Antônio Fleury destacou a inconstitucionalidade do art. 2º da PEC, por ultraje ao princípio da separação de poderes (CRFB/1988, art. 60, § 4º, III). Dois foram os argumentos apresentados no voto: i) a “nova sabatina” se justifica tão somente como mecanismo de ingresso, não podendo transformar-se em condicionante de aposentadoria ou de continuidade no cargo; ii) impor nova aprovação pelo Senado Federal implicaria manifesta violação à garantia de vitaliciedade, uma vez que “fragiliza[ria] o Poder Judiciário”, de sorte a afetar sua “imparcialidade, já que o interessado em permanecer no cargo ficaria refém de interesses político-partidários, podendo redundar no comprometimento da liberdade e independência do magistrado.”4

Embora se reconheça que o poder de reforma constitucional seja prerrogativa conferida, pelo art. 60, ao Congresso Nacional para permitir a adequação das disposições constitucionais às novas exigências sociais, tal atuação encontra limites na própria Carta Magna.

Não é novidade que o constituinte retirou do comércio político ordinário um conjunto de normas, cuja supressão integral enseja necessariamente a ruptura com a ordem constitucional vigente (limites materiais ao poder de reforma – art. 60, § 4º)5. À evidência, essas normas têm um conteúdo normativo mínimo, sem o qual tudo se converteria em um jogo de retórica para conferir aparência de direito ao arbítrio. Por “mínimo” se deve entender o espectro decorrente da semântica do texto constitucional. Aliás, trata-se de um imperativo democrático, na medida em que se franqueia a qualquer pessoa, iniciada ou não em ciências jurídicas, a possibilidade de interpretar o sentido das disposições constitucionais tendo somente um dicionário a tiracolo.

No que tange ao art. 60, § 4º, III, a densificação do seu conceito pode ser facilmente extraída da própria Constituição: a independência e a harmonia, previstas no art. 2º, são características indissociáveis da separação de poderes, de modo que qualquer emenda tendente a abolir esse núcleo essencial estará em desacordo com o ordenamento em vigor.

É precisamente essa racionalidade que preside o desenho constitucional de investidura nos cargos de ministro do STF, dos tribunais superiores e do TCU perante o Senado Federal: nomeação executiva após aprovação legislativa (no caso, do Senado Federal). O processo de escolha é prévio – e não concomitante ou posterior – à investidura no cargo. Modelo oposto, condicionando a permanência dos agentes públicos a nova aprovação (ou, eventualmente, a aprovações periódicas), tal como instituído pela emenda aqui debatida, compromete substancialmente a independência do Poder Judiciário, núcleo essencial do princípio da separação de poderes.

De fato, a observância à independência dos demais poderes não se revela mero capricho ou entrave injustificado oposto pela Constituição à atividade do Legislativo. Existe um fundamento substantivo para tal previsão: a existência de um Judiciário independente é essencial para o respeito aos direitos e às liberdades individuais, para a limitação das prerrogativas do Estado e, consequentemente, para a própria existência e manutenção do Estado de direito. James Madison, em clássico discurso sobre a importância da independência judicial, afirmou: “Tribunais de Justiça independentes […] serão uma fortaleza impenetrável contra toda usurpação de poder no Legislativo ou Executivo; eles serão naturalmente guiados a resistir a toda violação a direitos expressamente estabelecidos na Constituição pela Carta de Direitos.”6

Um juiz independente, em qualquer leitura constitucionalmente adequada, não pode estar sujeito à avaliação de quem quer que seja para sua manutenção ou sua retirada do cargo. O ato de julgar, por natureza, desperta antipatias e paixões diversas, decorrentes dos interesses envolvidos na causa. O julgador não pode depender da aprovação política dos membros de outros poderes para permanecer na magistratura, porque a própria Constituição exige que ele seja independente, como conteúdo indissociável da separação entre os poderes.

Atrelado a esse argumento, é possível apontar ofensa ao devido processo legal, garantia fundamental prevista no art. 5º, LIV, da Constituição. O recall legislativo criado pela EC nº 88/2015 confere aos parlamentares o poder de ameaçar permanentemente, com a perda do cargo, os seus próprios julgadores, não apenas nas infrações penais comuns (art. 102, I, b, da CRFB/1988), como também em diversas outras matérias de imenso interesse político. Como esperar uma Justiça imparcial, independente e que respeite o devido processo legal de uma Corte cujos membros atuam com, no mínimo, 81 espadas de Dâmocles7 sobre suas cabeças?

Com tais afirmações, não se pretende advogar o engessamento do modelo constitucional de interação entre os poderes da República. É perfeitamente possível – e, por vezes, recomendável – a modificação da engenharia constitucional na busca contínua do aperfeiçoamento das instituições. Entretanto, eventuais modificações não podem fulminar, como faz a EC nº 88/2015, as garantias de imparcialidade e independência do Poder Judiciário, fazendo-o depender da confiança política dos membros dos demais poderes.

Em situações extremas como a aqui retratada, é preciso que o STF, no exercício do controle de constitucionalidade, interdite investidas normativas arbitrárias em desfavor do Poder Judiciário e que estão em flagrante desacordo com os preceitos fundamentais salvaguardados pela Carta de 1988. O acolhimento do pedido veiculado na ADIn nº 5316, portanto, é a única saída para impedir o que seria apenas uma “bengala” de se tornar o réquiem8 da independência do Judiciário brasileiro.

 



1 Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Professor convidado da pós-graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

2 Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor de Direito Constitucional e Eleitoral. Assessor-chefe do Gabinete do Ministro Luiz Fux no TSE.

3 Superior Tribunal de Justiça, Superior Tribunal Militar, Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal Superior do Trabalho e Conselho Nacional de Justiça.

4 Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Texto da PEC nº 457/2005. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=348942&filename=VTS+1+CCJC+%3D%3E+PEC+457/2005>. Acesso em: 10 maio 2015.

5 Sobre o ponto, cf. SARMENTO, Daniel; SOUZA, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2012,p. 291-319. Especificamente sobre o alcance da cláusula inserta no art. 60, § 4º, IV, da Constituição (“direitos e garantias individuais”), ver o erudito trabalho de Rodrigo Brandão, Direitos fundamentais, democracia e cláusulas pétreas, publicado pela Editora Renovar, em 2008.

6 Tradução nossa. Original: “[...] independent tribunals of justice […] will be an impenetrable bulwark against every assumption of power in the legislative or executive; they will be naturally led to resist every encroachment upon rights expressly stipulated for in the constitution by the declaration of rights.”  Disponível em: <http://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/v1ch14s50.html>. Acesso em: 10 maio 2015.

7 A espada de Dâmocles é uma metáfora extraída da mitologia romana associada a Dâmocles e ao tirano Dionísio, de Siracusa, que representa a insegurança daqueles com grande poder, em virtude da possibilidade de perda repentina desse poder. Conta o mito que Dâmocles era um cortesão bastante bajulador na corte de Dionísio. Em certa oportunidade, Dionísio apresentou uma proposta a Dâmocles: ofereceu que ambos trocassem de lugar por um dia, de forma que Dâmocles pudesse sentir todos os prazeres que o tirano usufruía. Na sequência, Dionísio ordenou que uma espada fosse pendurada sobre o pescoço de Dâmocles, presa apenas por um fio de rabo de cavalo. Ao ver a espada afiada suspensa diretamente sobre sua cabeça, Dâmocles perdeu o interesse pela excelente comida e pelas belas garotas e abdicou de seu posto. 

8 Réquiem é uma cerimônia religiosa cristã especialmente composta para um funeral.