O papel da ética no processo eleitoral

Frederico Franco Alvim1

 

só acredito nos homens. finalmente, só acredito nos homens, e espero que um dia se arrependam. bastava-me isso, que um dia genuinamente se arrependessem e mudassem de conduta, para que fosse possível acreditarem uns nos outros também.

Valter Hugo Mãe, em A máquina de fazer espanhóis

 

A democracia não se resume em votar e ser votado; para o seu estabelecimento, as eleições são uma condição necessária, mas não suficiente.2 A democracia é mais do que a garantia de participação na escolha do governo: exige o alcance de um cenário em que a atuação do governo eleito proporcione um retorno, identificado pelo oferecimento de uma sociedade em que as pessoas (todas as pessoas!) compartilhem não apenas as prerrogativas políticas, mas também os demais direitos fundamentais. O regime democrático é um sistema de expectativas,3 simultaneamente caracterizado pelo aspecto eleitoral e pela busca de um amplo desenvolvimento social.

Não se subestima, com isso, o processo eleitoral. Pelo contrário, embora também se almeje a democracia econômica (com uma universal e verdadeira satisfação das necessidades básicas) e a democracia social (com o implemento de mecanismos democráticos de tomadas de decisão em todos os espaços coletivos), o certo é que a democracia política é condição indispensável para a materialização das demais. Isso porque, nos Estados regidos pelo princípio da soberania popular, o domínio político não é um pressuposto gratuitamente aceito.4 Ao invés, exige uma justificação, a que comumente se denomina legitimação.

Em um regime democrático, mais do que se perguntar “quem é que manda”, é importante questionar “por que é que se obedece”. As leis e políticas públicas, para que tenham eficácia, devem ser aceitas e assimiladas pela população. Isso só é possível quando seus destinatários as tomem por legítimas. Só se acata o comando de quem tem poder para mandar. Essa legitimação é oferecida pelo método eleitoral: procedimento pelo qual os membros de uma comunidade escolhem os representantes que, em seu nome, exercerão um governo consentido.

Há que se perceber, contudo, que a eleição é um instrumento, sendo, portanto, uma ferramenta essencialmente neutra. Por isso, falar de eleição não é, necessariamente, falar de democracia. Muitos regimes não democráticos também se valeram – e ainda se valem – do método eleitoral. A partir dessa constatação, fica claro que o fenômeno das eleições tanto pode dar origem a democracias genuínas como pode dar força a regimes que desprezam a vontade do povo. A diferença é que, enquanto eleições autoritárias (jogos de cartas marcadas) produzem simplesmente um “governo”, eleições autênticas produzem um “governo legítimo”, nascido (e vocacionado) para a busca da prosperidade em um clima de consenso.

Mas o que são eleições legítimas?

Costuma-se dizer que eleições legítimas são aquelas que, para além de promover uma ampla inclusão dos estratos populares (máxima extensão do sufrágio), desenvolvem-se em um ambiente de respeito à ordem legal (depuração dos procedimentos de escolha), a qual, por sua vez, deve assegurar um grau razoável de competitividade. Eleições legítimas, portanto, pressupõem ampla participação popular, amplo respeito à lei e à configuração legal justa.

Uma grande verdade a respeito da legitimidade está em saber que ela não consiste em um conceito absoluto, isto é, não funciona em uma lógica binária de presença ou ausência, de ser ou não ser. Isto é, a avaliação de uma eleição não admite apenas dois rótulos, havendo de ser, necessariamente, apenas “legítima” ou “ilegítima”. A questão da legitimidade é de grau. A depender do nível de qualidade legislativa, do índice de observância das leis e da retidão das condutas dos atores envolvidos, uma eleição poderá ser mais (ou menos) legítima, o que significa dizer mais (ou menos) excelente.

Esse detalhe, à primeira vista insignificante, adquire importância fundamental, porque é a partir dele que se percebe, primeiro, que a ética é um componente essencial para a integridade eleitoral e, segundo, que a sua presença determina, de fato, a qualidade que se atribui a uma eleição. Por quê?

Em sentido lógico, porque o sentimento de moralidade que pauta as ações individuais também impera nas esferas coletivas, especialmente na política, relativa aos grandes temas da experiência social.5 Em sentido prático, porque lei e realidade são vias diversas que nem sempre se encontram. A prática política muitas vezes não encontra abrigo na moldura jurídica e, nesses casos, o valor de cada ato será aferido precisamente pelos balizamentos éticos.6 Do mesmo modo, ainda diante de condutas adequadas a tipos legais, a ética servirá à avaliação, pois, como se sabe, sobretudo no campo político, nem tudo o que vale é honesto. Também assim, o filtro ético serve mesmo para a definição da preferência política, para a escolha dos candidatos. É sempre positivo avaliar as opções pelo prisma dos valores, quanto mais quando se percebe que, nas democracias representativas, as eleições não resolvem as grandes políticas públicas, mas sim quem serão aqueles que as constroem.7

A ética é importante porque diz respeito à conduta do ser humano, não apenas em relação a si mesmo, mas também em relação aos seres com os quais interage, e ao próprio ambiente que os rodeia.8 Compreende a ética, então, os ideais pelos quais devemos nos esforçar (por exemplo, a luta por eleições justas) e, especialmente, o modo como deve o indivíduo se comportar (atitudes que devemos todos assumir para que aquele plano se concretize).

As normas para a conduta ética variam no tempo e no espaço; dependem, portanto, do contexto social e político de cada época e de cada país. Sem embargo, existe atualmente um consenso a respeito de alguns princípios básicos exigidos para que se celebrem eleições livres e justas em qualquer sistema eleitoral.

No contexto político, essa pauta ética baseia-se na crença de que a força do poder político depende da confiança da população. É daí que se origina essa busca (quase obsessiva) da legitimidade eleitoral. Para que a legitimidade plena seja alcançada, as eleições têm, obviamente, de desenvolver-se dentro de um ambiente informado pela legalidade, mas também por um profundo enraizamento ético, presente, inclusive, no espírito das leis. Isso porque a configuração das eleições deve espelhar uma base valorativa que, mais do que apenas apresentar vencedores, seja capaz de defender a moralidade pública, de afastar condutas antissociais que corrompam o processo e, ainda, promover o exercício pleno da cidadania.

Ao contrário do que se imagina, a ética não é algo a ser exigido apenas dos atores políticos – partidos e candidatos –, mas ainda dos eleitores (que não podem vender o voto, que hão de respeitar a opinião alheia e que não devem modular suas escolhas consoante mesquinhos interesses particulares, mas sempre à vista do que é melhor para o coletivo); dos órgãos de imprensa (que devem informar com responsabilidade e isenção, além de abdicar de confundir ou manipular a opinião pública); do Poder Judiciário (a quem cumpre aplicar a lei indistintamente e manter os necessários afastamento e isenção); e, fundamentalmente, do próprio Poder Legislativo, que, em tempos de reforma política, deve moldar todo e cada passo do trabalho de aprimoramento normativo segundo o interesse público, impedindo ou evitando a construção de arranjos artificiais que apenas satisfaçam a cobiça política, ignorando em tom de solenidade as importantes expectativas do povo.



1 Analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Pós-graduado em Direito e Processo Eleitoral pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Eleitoral Internacional pela Universidade Nacional Autónoma de México. Autor da obra Curso de direito eleitoral, Ed. Juruá, 2014. Professor e palestrante em Direito Eleitoral.

2 SARTORI, Giovanni. 30 lecciones sobre la democracia. Ciudad de México: Taurus, 2009, p. 108.

3 FAYT, Carlos S. Derecho político. Tomo II. Buenos Aires: La Ley, 2009, p. 4.

4 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 292.

5 FAYT, op. cit., Tomo I, p. 16.

6 LOUREIRO, Raul Cid. O processo político-eleitoral e a ética. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro, n. 50, p. 69, 1997.

7 SARTORI apudLOUREIRO, op. cit., p. 71.

8 FARIAS NETO, Pedro Sabino. Ciência política: enfoque integral avançado. São Paulo: Atlas, 2011, p. 22.