As manifestações populares e a impossibilidade de revogação dos mandatos eletivos em curso por insatisfação dos eleitores
Abraão Luiz Filgueira Lopes1
Em meio a um cenário de insatisfação com os serviços públicos essenciais, especialmente, num primeiro momento, com a perspectiva de aumento da tarifa de transporte coletivo, o ano de 2013 marcou o reflorescimento de ideias que pareciam distantes da realidade democrática brasileira. A população foi às ruas para reivindicar mudanças e, em alguns estados e municípios, os movimentos populares chegaram a exigir a saída dos governantes em pretensão manifestada nos cartazes de “Fora” espalhados por alguns dos centros urbanos brasileiros.
A insatisfação popular com os governantes trouxe à tona uma discussão jurídica essencial que diz respeito à possibilidade ou não de os cidadãos exigirem a revogação dos mandatos eletivos em casos de manifesta desaprovação do agente político.
A revogação dos mandatos eletivos em curso, consagrada pela expressão em inglês recall – sem tradução eficaz para o português –, realiza-se por meio de nova convocação dos eleitores às urnas, desta feita, para decidirem se o mandato do representante eleito será ou não abreviado. Essa técnica ganhou alguma notoriedade no ano de 2003, quando os eleitores do estado norte-americano da Califórnia resolveram depor o governador então eleito, decidindo, pois, que ele não poderia concluir o mandato. Na mesma oportunidade, inclusive, além de destituir o governador Gray Davis, o eleitor californiano acabou elegendo o ator Arnold Schwarzenegger para o cargo.
Passando à análise da possibilidade do recall no Brasil, que, ao contrário dos Estados Unidos, passou por um processo recente de democratização, é essencial compreender que a democracia brasileira está fundada na realização de eleições periódicas, a partir das quais o corpo de eleitores escolhe seus representantes no governo. Isso permite falar, portanto, em uma democracia essencialmente representativa.
Dessa forma, os agentes políticos eleitos são representantes dos cidadãos nos cargos de direção do país, condição obtida a partir das eleições, pelas quais os eleitores conferem um mandato àqueles que se saíram vencedores nas urnas, isto é, um mandato eletivo. Comparativamente, a mesma figura jurídica de representação existe quando qualquer pessoa resolve designar alguém para ser o seu representante em negócios diversos ou específicos. No caso dos mandatos eletivos, porém, há um prazo previamente determinado pela Constituição Federal para duração da representação, que é de oito anos para o cargo de senador e de quatro anos para os demais cargos eletivos. Essa temporariedade dos mandatos é uma garantia da democracia não apenas para os candidatos, mas também para os eleitores: para o candidato, porque o representante eleito tem a garantia de que, salvo processo legal de cassação, estará investido no cargo público; para o eleitor, porque vê legitimada a sua expectativa de que o representante democraticamente escolhido não será afastado por quem quer que seja, salvo se praticada alguma irregularidade.
Enfim, a temporariedade dos mandatos eletivos é uma conquista da democracia – especialmente num país que viveu anos de ditadura –, a impedir que um representante legitimamente eleito seja destituído pela variação das conveniências políticas.
Diante dessas razões, a ordem constitucional brasileira não dispõe de instrumento que confira aos eleitores a possibilidade de revogação dos mandatos eletivos em curso, devendo o cidadão, em caso de insatisfação com os representantes eleitos, aguardar uma nova eleição para, só então, fazer opção por outro candidato.
Isso não exclui, entretanto, a possibilidade de cassação do mandato por infrações político-administrativas, ou mesmo por infrações eleitorais que viciem os votos obtidos pelo então candidato, depois de eleito. No primeiro caso, marcado pela prática de crime de responsabilidade, pode o mandatário ser cassado num processo de impeachment. Já no segundo caso, a prática de determinadas condutas em campanha eleitoral pode comprometer a legitimidade da eleição do representante, podendo a Justiça Eleitoral, nesse caso, cassar o diploma do candidato, isto é, o ato que certifica sua vitória nas urnas e autoriza a investidura no cargo eletivo.
Em outras palavras, a eleição do agente político não é uma garantia de exercício completo do mandato, porque o cometimento de infrações para a obtenção do mandato ou durante o seu exercício pode redundar na interrupção legal da representação conferida pelo corpo de eleitores.
No entanto, como se viu, a Constituição Federal não prevê instrumento que autorize a revogação do mandato eletivo em curso pelo eleitor, em caso de insatisfação generalizada com aquele que o exerce, o que se explica, em grande medida, pelo processo relativamente recente de redemocratização por que passou o Brasil.
Em conclusão, a despeito da ausência atual de instrumento de revogação dos mandatos (recall), há proposta de emenda constitucional (PEC) em tramitação para instituir esse instrumento. Essa PEC, por sinal, ganhou força após os protestos populares de meados de 2013.
Ao final, destaque-se que a atual inexistência de previsão constitucional da revogação pelos eleitores dos mandatos eletivos em curso somente reforça a necessidade de conscientização do eleitor no momento do exercício do direito ao voto, porquanto, até que seja aprovada a criação do recall, a eleição do candidato significará, em condições normais, o exercício integral do mandato, independentemente de eventual desaprovação ou insatisfação por parte dos eleitores.
1 Especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, advogado e professor de Direito Eleitoral do Centro Universitário do Rio Grande do Norte.