Aspectos práticos da doação acima do valor legal
Florisvaldo José Cardozo Bomfim1
O Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650/DF, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que questiona, dentre outros temas, a doação de recursos para campanhas eleitorais por pessoas jurídicas e o limite de 10% do rendimento do ano anterior para doações realizadas por pessoas físicas, ambas previstas na Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições).
Conforme o relator, “a participação de pessoas jurídicas apenas encareceria o processo eleitoral sem oferecer, em contrapartida, a melhora e o aperfeiçoamento do debate”, votando por sua inconstitucionalidade2. Também considerou inconstitucional a limitação imposta às pessoas físicas “porque dificilmente haveria concorrência equilibrada entre os participantes neste processo político”. Acompanharam o relator os Ministros Joaquim Barbosa, Dias Toffoli e Roberto Barroso, estando o julgamento suspenso pelo pedido de vista do Ministro Teori Zavascki.
Feitas as ressalvas quanto à possível mudança da legislação, passa-se à análise do tratamento jurisprudencial dado à doação acima do valor legal, com foco na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo.
Caracteriza-se a doação de recursos acima do valor legal, nos termos da Lei das Eleições, quando a pessoa física realiza doações para campanhas eleitorais em valores superiores a 10% dos rendimentos brutos obtidos no ano anterior à eleição. Para as pessoas jurídicas, o limite é de 2% do faturamento bruto do ano anterior ao pleito. Do conceito legal, infere-se que a pessoa jurídica já deve estar constituída no ano anterior à eleição, e não apenas ter apresentado faturamento bruto3.
Para as pessoas físicas que no ano anterior ao pleito declararam-se isentas ou não apresentaram declaração à Receita Federal, faz-se incidir o limite de 10% sobre a faixa de isenção do imposto de renda para a aplicação ou não da sanção legal4.
A diversidade entre os conceitos de domicílio eleitoral5 e de domicílio civil suscitou vários conflitos de competência, havendo a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral se firmado, pacificamente, pela competência do juízo eleitoral do domicílio civil do doador6, pessoa física ou jurídica.
O empresário individual, ainda que tenha registro no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), responde de forma ilimitada e com seus bens pessoais pelas obrigações contraídas do exercício da atividade empresarial. Assim, apesar da existência formal da pessoa jurídica, há unidade entre o patrimônio do empresário (pessoa física) e o ente moral7. Com base nesse entendimento, diversos julgados do Tribunal Regional Eleitoral aplicam ao empresário individual o limite de doações das pessoas físicas (10%) e não o limite de 2%, concernente às pessoas jurídicas8.
De acordo com ementa do Recurso Eleitoral nº 96-58.2013.6.26.0250, do TRE/SP,
[...] o limite sobre doações para campanhas imposto pelos arts. 23 e 81 da Lei das Eleições decorre do objetivo de preservar-se a disputa eleitoral contra práticas espúrias, mormente as corporificadas em abuso de poder econômico com base em dados objetivos. Nessa conformidade, não pesa argumento sobre boa-fé.
Em outras palavras, a lei não exigiu qualquer intenção por parte do doador, adotando critério puramente objetivo (comparação feita entre o valor doado e o rendimento do ano anterior à eleição, independentemente do ânimo do agente). Por esse mesmo argumento, compreende-se a inaplicabilidade do princípio da insignificância à espécie, pois o que se almeja é a proteção do pleito contra o abuso do poder econômico, objetivamente considerado.
De modo geral, a jurisprudência pátria (inclusive o TRE/SP) não afastava o ilícito quando, após a notificação da representação por doação acima do valor legal, o doador retificava sua declaração de renda junto à Receita Federal em valor que compatibilizava a doação realizada e seu rendimento do ano anterior. O recente julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 1.475-36.2010.6.00.0000,relatado pelo Ministro Dias Toffoli, trouxe novo entendimento à matéria, com base na presunção de boa-fé e na necessidade de comprovação da má-fé. Assim, o exercício de uma faculdade conferida pela legislação tributária não pode ser tida como mera manobra pautada pela má-fé do retificante, devendo esta ser comprovada.
Cada um dos temas resumidamente aqui expostos pode, com facilidade, constituir objeto de extensos estudos jurídicos. O presente artigo, em seus limites, visa apresentar o tema, suas principais questões práticas, embasando-se nas decisões do Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo.
1 Analista judiciário, formado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca/SP, chefe de cartório da 60ª Zona Eleitoral do Estado de São Paulo – Ituverava.
2 Grosso modo, a inconstitucionalidade consiste na inadequação de uma norma à Constituição da República Federativa do Brasil.
3 Recurso Eleitoral nº 96-48.2013.6.26.0124 – TRE/SP.
4 RE – Recurso nº 6.236 – Agudos/SP. Acórdão de 11.3.2014. Relator(a) Clarissa Campos Bernardo. Publicação: Diário da Justiça Eletrônico do TRE/SP (DJESP), data: 20.3.2014.
5 Mais amplo, abrangendo, inclusive, os vínculos afetivos de determinada pessoa com a zona eleitoral.
6 TSE, CC n° 19122/CE, rel. Min. Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, DJE de 4.10.2013; TSE, CC n° 5610/SE, rel. Min. José Antonio Dias Toffoli, DJE de 28.6.2013; TSE, CC n° 5792/PE, rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, DJE de 17.8.2012; TSE, REP n° 981401/DF. Julgados extraídos do texto do acórdão: Conflito de Competência nº 29-33.2014.6.26.0000 – Classe nº 9 – Itaquaquecetuba/São Paulo.
7 Pessoa jurídica.
8 Recurso Eleitoral nº 162-31.2013.6.26.0317 – Praia Grande/São Paulo.