O abuso de poder nas disputas eleitorais

Frederico Franco Alvim1


 Em linguagem popular, a palavra poder remete à aptidão para o exercício de uma prerrogativa individual. Nesse sentido, quando se fala em poder, fala-se da capacidade para a realização de uma conduta, isto é, da possibilidade de materialização de um agir.

Não é esse, porém, o significado que se emprega a esse substantivo quando se examina o abuso de poder nas eleições. A rigor, a ciência eleitoral concentra-se em investigar o poder como um fenômeno das relações interpessoais, de maneira que o sentido que se lhe confere tem um caráter de feitio social, facilmente identificável a partir da leitura de Bobbio, que explica o fenômeno em questão como “a capacidade do homem em determinar o comportamento do homem”.2

Evidencia-se, assim, que a noção de poder adotada pelo Direito Eleitoral diz respeito àquela categoria de manifestações de influência apuradas na convivência entre os humanos, separando-se, portanto, de outra significação possível, esta de conotação política e que se relaciona com a concepção referente à força irresistível do Estado de (em nome do bem-estar comunitário) impor sua vontade aos cidadãos.

De acordo com Carlos Vilas, toda relação de poder apresenta duas características básicas: a efetividade e a intencionalidade. A efetividade refere-se à constatação de que o poder cobra existência em seus próprios efeitos, isto é, materializa-se apenas quando se consegue a obediência buscada.3 Com efeito, um poder que “manda” sem encontrar cumprimento, a rigor, não é um poder, mas apenas um propósito frustrado.4 A intencionalidade significa que a relação de poder invariavelmente amarra-se a um propósito, ou seja, encontra-se sempre orientada à obtenção de uma resposta do sujeito sobre o qual o poder se exerce. Todo poder, de fato, carrega uma “intencionalidade finalista”, haja vista que sua força existe e atua com e para uma finalidade.5

No plano dos processos eleitorais, a intenção perseguida pelo emprego do poder é bastante clara: a acumulação do maior número de votos possível, a fim de definir o resultado das eleições. Frequentemente, o detentor de poder vale-se de ações destinadas a um objetivo positivo, traduzido em um propósito de determinação do vencedor da disputa. Não é impossível, no entanto, que os efeitos do poder sejam utilizados com o objetivo de dificultar o acesso a cargos representativos, quando então, com feição negativa, o poder será aplicado para prejudicar ou sabotar uma opção política específica.

Fernández Ruiz observa que, para atuar, o poder necessita de um sujeito, de um objeto e de um fundamento, sendo: o sujeito, o depositário do poder; o objeto, o seu destinatário, isto é, a pessoa ou o grupo submetido ao poder; e o fundamento, a vontade que se impõe a outrem.6 Como medida didática, é possível contextualizar essas relações, a fim de oferecer um esquema básico para a compreensão do funcionamento do abuso de poder nas eleições. Considerados, então, os elementos que compõem as relações de ingerência, tem-se: como sujeito, pessoas ou grupos que ostentam alguma forma de poder (candidatos, coordenadores de campanha, cabos eleitorais, partidos políticos e apoiadores em geral, como conglomerados econômicos, veículos de mídia, etc.) e que se propõem a empregá-la na fase de campanha, em favor (o que é mais frequente) ou em detrimento (o que é mais raro) de uma determinada candidatura; como objeto, o corpo de eleitores ou, mais propriamente, cada cidadão que o compõe, visto que o voto é individualizado e que o poder, nesse sentido, opera em uma plataforma microssocial; e, finalmente, o seu fundamento, identificado pela vontade que se pretender impor, traduzida aqui no desejo de condicionar o sentido a ser exprimido por ocasião da manifestação do direito político de votar. Essa vontade, como visto, atua geralmente mediante a projeção de um resultado, positivo ou negativo, passível de ser auferido ou suportado pelo destinatário, a partir do efetivo emprego, por parte do sujeito, das prerrogativas que incorpora em função do poder que ostenta.

O emprego do abuso de poder nas eleições é uma realidade nefasta no cenário eleitoral: afeta a liberdade do eleitor e mina, de maneira violenta, a igualdade de oportunidades entre os candidatos, condicionando o resultado do certame e, assim, comprometendo a normalidade e a legitimidade das eleições.

A ofensa a esses valores é levada em conta por Fortunato Bin, que os utiliza para forjar um conceito. Nas palavras do autor, o abuso de poder nas eleições caracteriza-se por ser “[...] um completo de atos que desvirtuam a vontade do eleitor, violando o princípio da igualdade entre os concorrentes do processo eleitoral e o da liberdade de voto, que norteiam o Estado democrático de direito”.7 José Jairo Gomes é categórico em ressaltar a sua nocividade, ao pregar que o pleito em que o abuso se instala resulta necessariamente corrompido, na medida em que impede que a vontade genuína do eleitor se manifeste nas urnas. Em sua visão, isso contribui para a formação de representação política “inautêntica, mendaz”.8 Trata-se, portanto, de expediente nocivo ao experimento democrático, na medida em que afeta a livre concorrência pelo poder.9

Os processos eleitorais contemplam, necessariamente, uma fase destinada a atividades de convencimento do eleitorado. Resulta, evidente, no entanto, que esse processo de captação de preferências políticas deve estar muito bem delineado, estabelecendo-se limites normativos armados com vistas à preservação de sua legitimidade. Existem, portanto, fronteiras legítimas a condicionar os modos e a extensão das atividades e mesmo do discurso empregados. Porto Lima esclarece:

 

É claro que as influências externas sempre farão parte da formação da vontade do eleitor. O que se deseja é que tais influências brotem naturalmente do seio da sociedade, evitando-se o direcionamento da escolha em função apenas de interesses de uma minoria, como consequência de uma manipulação econômica [política, social ou de qualquer outra ordem] profundamente indesejável. A escolha efetuada nesses termos traduz-se na discrepância entre as decisões políticas e as reais expectativas e necessidades dos próprios representados.10

 

A campanha eleitoral, compreendida como um conjunto de atividades desenvolvido com o propósito de captação de votos, tanto no aspecto financeiro quanto nos aspectos político e ideológico, deve ser conduzida de acordo com os limites previstos no ordenamento, e esses limites hão de plasmar as escolhas legislativas que resguardem um mínimo de competitividade, sob pena de comprometimento da legitimidade do processo de escolha dos representantes. O uso desmedido do poder em qualquer de suas formas deve ser impedido no plano fático, a partir de soluções desenhadas no campo normativo e implementadas (ou mesmo construídas) na atividade jurisdicional. A realização dessa missão, contudo, não é fácil. O poder, por sua própria natureza, tende ao desconhecimento de limites e, outrossim, também por natureza, quase sempre se disfarça.



1 Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso, especialista em Direito Eleitoral e em Direito e Processo Eleitoral, autor do livro Curso de Direito Eleitoral – Atualizado de acordo com as leis nos 12.875/2013 e 12.891/2013 e com as resoluções expedidas pelo Tribunal Superior Eleitoral para as Eleições 2014 (Ed. Juruá).

2 BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: UnB, 2009, p. 933.

3 VILAS, Carlos. El poder y la política: el contra-punto entre razón y pasiones. Buenos Aires: Biblos, 2013, p. 20.

4 RUIZ, Jorge Fernández. Tratado de derecho electoral. Cidade do México: Porrúa, 2010, p. 12.

5 CAMPOS, German Bidart. El poder. Buenos Aires: Ediar, 1985, p. 31.

6 RUIZ, Jorge Fernández. Op. Cit., p. 12.

7 BIN, Eduardo Fortunato. O polimorfismo do abuso de poder no processo eleitoral: o mito de Proteu. In: Revista do TRE/RS, v.8, no 17, jul./dez. 2003, p. 46.

8 GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 245.

9 CUBILA apud BIN, Op. Cit., p. 49.

10 LIMA, Sídia Porto. Prestação de contas e financiamento de campanhas eleitorais. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2009, p. 33.