Partidos políticos e fidelidade partidária: uma análise à luz da Constituição Brasileira de 1988

Juvencio Almeida Costa Neto1

 

Os partidos políticos têm origem associada aos movimentos ideológicos de contestação às exacerbações do poder monárquico, por parte de deputados do parlamento inglês, em meados do século XVII.2 Desde então, a ideia de formação de grupos de opinião em torno de um ideal político comum foi continuamente aperfeiçoada e adaptada aos mais diversos modelos de constitucionalismo existentes.

A democracia brasileira é, a propósito, intrinsecamente relacionada à atuação desses blocos ideológicos, uma vez que a diversidade de ideias e pensamentos é o motor das divergências que – observados e tomados como pressupostos os direitos humanos fundamentais – representam o pensamento dos cidadãos. Em outras palavras, são os partidos políticos que reúnem, fixam e enumeram os elementos valorativos que funcionarão, ao menos idealmente, como vetor de condução das decisões políticas.

Não por outro motivo, a Constituição Federal de 1988 elencou o pluralismo político como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Dedicou, ainda, dentro do Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, um capítulo à análise dos aspectos fundamentais no processo de organização e funcionamento das agremiações partidárias. Foi estabelecida a regra da liberdade de criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, mas também houve resguardo, conforme o art. 17, da soberania nacional, do regime democrático, do pluripartidarismo e dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Ou seja: embora as agremiações políticas tenham plena liberdade para reproduzir os ideais filosóficos, sociais e doutrinários de seus afiliados – contando, para isso, com autonomia para definição da estrutura interna e do modo de funcionamento –, não pode haver extrapolação dos limites formais e materiais impostos pela Carta Magna, tais quais as vedações de recebimento de recursos financeiros de entidades e governos estrangeiros ou de ir de encontro aos direitos fundamentais da pessoa humana. Com esses mecanismos de proteção, visa-se à defesa da soberania nacional e da própria dignidade da pessoa humana.

Buscou a Lei Maior, também, o resguardo das ideologias que compõem as bandeiras dos partidos. Nesse aspecto, entretanto, a realidade não raramente destoa dos propósitos do constituinte. Observa-se a existência de partidos e de políticos que, uma vez no poder, não se servem à execução das ideologias divulgadas – consequência, conforme Djalma Pinto, da ausência, no Brasil, de uma “cultura partidária”.3

Justamente com a finalidade de evitar o uso de partidos como instrumentos para o alcance de projetos egoísticos e dissociados do que apregoam suas cartilhas ideológicas, houve registro da necessidade de estabelecimento de normas – dentro do plano estatutário dos partidos – de disciplina e de fidelidade partidária. A restrição do princípio da fidelidade partidária ao campo administrativo, entretanto, mostrou-se, durante muito tempo, insuficiente, uma vez que, embora fosse essencial para a obtenção do mandato eletivo, o partido político não era detentor do mandato partidário.

Essa realidade mudou apenas em 2007, quando, respondendo positivamente à Consulta nº 1.398, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fixou, por quórum majoritário, o entendimento segundo o qual os partidos políticos e as coligações têm preservado o direito à vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, em havendo pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda. Na Consulta-TSE nº 1.407/2007, ficou estabelecido que o mesmo raciocínio é aplicável aos casos de mandatos obtidos pelo sistema majoritário.

Ainda no ano de 2007 e com a finalidade de conferir à questão a segurança jurídica necessária, o TSE editou a Res. nº 22.610, por meio da qual o partido político interessado, o Ministério Público ou quem tiver interesse jurídico na causa pode pleitear na Justiça Eleitoral “a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária”, se não houver justa causa para o requerimento da desfiliação.

As exceções à regra da fidelidade partidária são justificadas por questões objetivas – e, por isso mesmo, de mais simples constatação, tais quais as hipóteses de incorporação e fusão partidárias ou de criação de partido novo –, ou por situações representadas por conceitos abertos, como “a mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário” ou a “grave discriminação pessoal”. Quanto a essas duas últimas hipóteses, caberá ao juiz, ante o caso concreto e à luz das circunstâncias e das valorações atribuíveis, definir acerca da ocorrência ou não das escusas alegadas.

Nos casos de fusão e incorporação partidária, a prova deve ser constituída dos documentos demonstradores da justa causa, e sua presença no rol de exceções se justifica pelo fato de que pode não haver identificação do representante político eleito com as novas siglas incorporadas. É importante ressaltar que a justificativa de criação de partido novo não determina a comprovação da extinção de outro ou de outros. Seu sentido prático se perfaz na necessidade de oxigenação e aprimoramento das ideologias políticas, acompanhando o desenvolvimento e a evolução das próprias relações sociais.

Além disso, o princípio constitucional do pluralismo político depende de que não haja, na criação de novos partidos, empecilhos formais e técnicos além daqueles definidos pela própria Constituição. Representantes ocupantes de mandato eletivo teriam, pois, o direito de identificação com agremiação recém-criada, sem que isso se vincule necessariamente à perda do direito de exercício do mandato ocupado. Sublinha-se que, nas situações de filiação em partido novo, essa deve ocorrer no razoável prazo de 30 dias após o registro de seu estatuto, conforme definido na Consulta-TSE nº 75.535/2011.

Considerando-se o objetivo do constituinte de estabelecer um regime democrático por meio do qual possa o eleitor se respaldar e ser guiado não por pretensões individualistas, mas por ideias e projetos políticos sociais abrangentes, a limitação, pelo TSE, das condições gerais de perda de mandatos políticos eletivos em caso de infidelidade partidária figura como eficiente providência prática capaz de garantir a moralização necessária aos feitos republicanos.



1 Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba e estagiário no Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba.

2 GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 83, 84.

3 PINTO, Djalma. Direito Eleitoral. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 109, 110.