O implemento do método democrático na história da democracia
Frederico Franco Alvim1
No famoso discurso fúnebre de 431 a.C., Péricles rendeu homenagens às vítimas do primeiro ano da Guerra do Peloponeso. Reunindo o povo no cemitério Cerâmico, o ilustre estadista destacou o espírito profundo da democracia ateniense, conclamando aos sobreviventes que seguissem na defesa da eternidade de seu legado. Por intermédio de suas palavras, naquele momento, Atenas vertia-se de cidade em ideal; e o regime democrático surgia como modelo.
O modelo grego, porém, em muito diferia dos atuais regimes de governo popular. A democracia de então era exercida sem quaisquer intermediários: os assuntos de Estado eram resolvidos em assembleias populares (denominadas ecclesias), nas quais os cidadãos que compunham o estrato social mais elevado deliberavam, entre outros assuntos, sobre a designação de magistrados e embaixadores, declarações de guerra e paz, aprovação de leis e aplicações de penas de desterro (ostracismo)2. Como se vê, a polis grega se autogovernava, prescindindo de processos eletivos, tais como os concebidos atualmente.
A experiência ateniense, entretanto, não durou mais do que dois séculos. A causa da interrupção foi, como observa Grondona (2000, p. 9)3, o desprestígio que a forma democrática de governo sofreu ante a derrota militar na Guerra do Peloponeso, para a monárquica Esparta, em 404 a.C. O insucesso bélico, atribuído à superficialidade e à irresponsabilidade das assembleias populares, insuflado pela condenação que levou à morte de Sócrates, veio a influenciar de maneira negativa uma sucessiva geração de notáveis – sobretudo os filósofos Platão e Aristóteles4 – que, desapontados com as falhas apresentadas pelo modelo em estudo, dedicaram-se à defesa de sistemas políticos não democráticos.
Contemporâneo à ascensão e à queda do modelo ateniense, o experimento romano – sobretudo na fase da República (509 a.C. a 27 a.C.) – daria à humanidade um contributo indispensável à construção dos regimes políticos atualmente vigentes: o esboço do instituto da representação. Com efeito, ao passo que todas as questões públicas relevantes, na Grécia, eram decididas diretamente pelo corpo de cidadãos, em Roma, desenvolveu-se um sistema por meio do qual a vontade social, quando solicitada, era-o de maneira mais restrita, em caráter primordialmente homologatório, por meio de comitias centuriatas (consultas a representantes da aristocracia) ou de concilia plebis (consultas a representantes dos plebeus). Ou seja: enquanto os gregos detinham o poder de criar, discutir e aprovar seus diplomas legislativos, os romanos limitavam-se a externar a aprovação ou a recusa diante de propostas que lhes eram apresentadas pelas figuras do patriarcado.
Note-se que a abertura à manifestação popular na república romana tampouco denota a utilização de processos eletivos semelhantes aos modernos. Isso não apenas porque, à diferença dos regimes políticos atuais, os senadores romanos não eram eleitos (mas sim indicados pelas famílias patrícias), senão também pelo fato de que aquela sociedade desconhecia o conceito de voto popular5, valendo-se de um sistema de sufrágio coletivo (tribal ou familiar).
Por volta de 130 a.C, como aponta Robert Dahl (2009, p. 24)6, a república romana começou a enfraquecer, não apenas pela inquietude civil, mas também pela guerra, pela corrupção e por um decréscimo do espírito cívico que existia entre os cidadãos. Seu declínio culminaria com o início da ditadura de Júlio César, período a partir do qual a participação do povo no governo, salvo em algumas comunidades isoladas7, praticamente desapareceria do cenário político mundial.
Depois de um hiato despótico de quase 20 séculos, os exemplos clássicos inspirariam as revoluções Gloriosa (Inglaterra, 1688) e Francesa (1789), estopins da democracia moderna. A partir do século XVII, a sucessiva superação das monarquias absolutas europeias cederia espaço ao resgate de ideias republicanas que, em seu bojo, traziam ditames de espírito democrático.
No primeiro caso, a revolta, inicialmente instaurada com o objetivo de restabelecer uma monarquia protestante, culminaria com a criação de um modelo de monarquia parlamentarista de caráter semidemocrático, caracterizado pelo surgimento de um órgão legislativo misto, composto pela Câmara dos Lordes (de composição aristocrática e transmissão hereditária) e pela Câmara dos Comuns (de composição popular e preenchimento eletivo). Observe-se que, em sua origem histórica, o novo regime inglês somente era popular em sua base, isto é, só era democrático sob o prisma dos votantes, eis que os votados provinham, inexoravelmente, da classe burguesa.
No entanto, se o fenômeno inglês, de sua parte, simboliza o início de uma recuperação democrática – e da adoção universal do método eletivo ¬–, o marco dessa guinada encontra-se, de fato, no levante francês, levado a efeito 100 anos depois. É que, embora a Revolução Gloriosa tenha, por sua vez, marcado o fim de um domínio absolutista, não encampava, ideologicamente, a possibilidade de transferir às massas a titularidade do poder. Essa ideia, ao revés, era central na pauta francesa, e acabou por exercer papel de relevo na multiplicação da base de apoio revolucionário. Na visão de Hobsbawm (2009. p. 109)8, para além de uma grave convulsão social, impulsionada pela fome, uma campanha de propaganda a favor de eleições deu ao desespero do povo uma perspectiva política, aliada a uma “tremenda e abaladora ideia de se libertar da pequena nobreza e da opressão”.
Assim é que, derrubado o Ancien Régime, o método eleitoral finalmente surgiria como forma de exercício da liberdade democrática. Com a lei constitucional de 1793, o Estado francês não apenas reconheceu o povo como fonte única de todos os poderes, como também a ele destinou seu exercício.9 Nascia, aí, a moderna democracia representativa.
Anos depois, contudo, a recém-nascida democracia francesa também sucumbiu. O fracasso atribui-se aos excessos cometidos pela assembleia e às atrocidades praticadas pelos radicais jacobinos, que deram espaço ao Império Napoleônico, que, ruindo, deu lugar à restauração da monarquia pela dinastia dos Bourbons, em 1814.
Tal como em Atenas, portanto, a democracia foi descredenciada, na França. Seu prestígio, entretanto, passaria a ser resgatado pela obra de Alexis de Tocqueville, a quem se deve, em boa parte, o fato de o sistema liberal haver trilhado a senda da democratização. Isso porque, após a derrota de Napoleão, a crescente influência da Rússia na Europa fez com que se acreditasse no despotismo como paradigma, até que o autor apontasse para o sucesso da vivência estadunidense.
Atualmente, vê-se concretizada a profecia tocquevilliana que apontava a adoção de regimes populares como um fenômeno universal e irrefreável. O desenrolar da história demonstra que os sistemas democráticos – a despeito de períodos de severos retrocessos –, foram, paulatinamente, implantados em quase todas as nações modernas.
De certa forma, a história dos governos democráticos pode ser comparada a um excerto do Livro das Vaidades, no qual o filho de Davi afiança a fragilidade humana diante de outras obras de Deus:
Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo seus circuitos. (Eclesiastes 1: 4-6.)
Assim como a aragem salomônica, os ventos democráticos deram suas voltas, geração após geração, até que a humanidade do chão se levantasse, a fim de prestigiar a sua própria grandeza.
1 Especialista em Direito e Processo Eleitoral, pós-graduando em Poder Judiciário com ênfase em Direito Eleitoral, doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais (com orientação em Direito Eleitoral). Analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso. Professor de Direito Eleitoral.
2 NATALE, A. Derecho político. 2. ed. Buenos Aires: Editora Depalma, 1998. p. 247.
3 GRONDONA, M. História de la democracia. Disponível em: <http://www.ucema.edu.ar/publicaciones/download/documentos/175.pdf>. Acesso em: 4 maio 2011.
4 Em síntese apresentada por Mário Justo López (2005, p. 401-402), pode-se afirmar que a crítica platônica – exposta em obras como A república e O político – consiste em sustentar ser inadmissível que a condução da polis fosse exercida à própria sorte, por qualquer pessoa, ao passo que a concepção aristotélica – encontrada em A política – centra-se na ideia de que as democracias seriam injustas, basicamente, porque, ao igualarem a todos indiscriminadamente, independentemente dos méritos, conduziriam, inevitavelmente, a um perpétuo domínio de pobres sobre ricos, de sorte a inviabilizar o necessário equilíbrio de direitos.
5 SÁNCHES, J. E. A. Derecho electoral. Ciudad de México: Oxford, 2010. p. 36-37.
6 DAHL, R. Sobre a democracia. 2. ed. Brasília: UNB, 2009.
7 V.g., algumas cidades do norte da Europa, por volta de 600 d.C. a 1000 d.C., e da Itália, por volta de 1.100 d.C.
8 HOBSBAWM, E. A era das revoluções: 1789-1848. 25. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
9 VASCONCELOS, J. Democracia pura. 2. ed. São Paulo: Nobel, 2011. p. 64.