Tema complementar
Museu do voto: um projeto de cidadania
Ane Ferrari Ramos Cajado e Amanda Camylla Pereira Silva¹
Vejo o tempo que passou, montando o tempo que passa, e já respirando a fumaça, do tempo que não chegou. De forma poética e sensível, a composição do músico pernambucano Siba desenha uma imagem sobre a relação entre passado, presente e futuro, fundamental para pensarmos sobre duas formas de o homem relacionar-se com o tempo: a história e a memória.
Para lembrar, nos debruçamos afetivamente sobre o passado, tendo o presente como referência. Nossa percepção sobre o passado, portanto, muda ao longo do tempo. Assim, nosso aniversário de cinco anos tem uma cor quando temos dez anos e pode assumir outra quando dele lembramos aos trinta. Por isso é que o ato de lembrar, noutras palavras, o ato de fazer memória se situa na relação entre passado, presente e futuro. Cada vez que visitamos o passado, ele muda, a depender do momento atual e das expectativas projetadas para o futuro.
Nessa tarefa de memorar, inserimos o evento lembrado em um conjunto maior, assumindo um sentido totalizador e direcionado para um “fim”. Dessa forma, interpretamos nosso passado, explicando determinados eventos como necessários para chegarmos a algum lugar ou para que algo que julgamos importante pudesse acontecer.
Até aqui, abordamos o ato de lembrar como uma ação individual, mas a memória é uma construção social. Dizer isso é reconhecer que a memória pessoal se constitui a partir de recordações compartilhadas pelos outros. Assim, o sentido das nossas memórias pessoais só é possível em conexão com as narrativas coletivas do passado. Por meio dessa estratégia, é estabelecido o diálogo entre os indivíduos e os valores – seja das sociedades, seja dos grupos aos quais pertencem – permitindo a organização dos nossos passos e tropeços à luz do passado.
Nesse trabalho de organização, intervém a ação de selecionar o que deve ser lembrado e o que precisa ser esquecido. O esquecimento, portanto, faz parte da própria estrutura da memória, não sendo seu oposto. Segundo o historiador Michel Pollack2 , a memória é seletiva e permeada pelo esquecimento e pelo silêncio. Por isso, a memória necessita de traços, vestígios por meio dos quais ela possa ser reavivada, transmitida e compartilhada. A memória é, portanto, inseparável de seus meios de transmissão como a língua, imagens, sinais, lugares, monumentos, museus, dentre outros3.
A escrita da história, ofício do historiador, como a memória, elabora também uma representação do passado a partir do presente. Essa elaboração, entretanto, assenta-se na análise e na crítica dos vestígios do passado, articulando métodos e teorias. Nessa reconstrução do passado, a história utiliza argumentos numa estratégia de convencimento colocada em ação pelas narrativas historiográficas4.
Memória e história, portanto, constituem-se em formas de manejar o tempo, estabelecendo, entre si, uma complexa relação marcada por aproximações e distanciamentos. Ambas, como vimos, referem-se ao passado, o que implica dizer que as narrativas sobre ele não são uma mera imitação do espaço e do tempo que já se foram. Tanto uma quanto a outra constroem representações, reinterpretando o passado a partir da interrogação de indícios e traços, buscando, assim, ordenar o caos dos acontecimentos mergulhados nas brumas da lembrança e do esquecimento.
Além dessas relações entre memória e história, é possível firmar outras: se, por um lado, a memória pode servir de documento e fonte para a escrita da história, esta, por outro, pode ser também fonte produtora – e legitimadora – de memórias e tradições. Dessa forma, a constituição da memória e da história são também campos de disputa social no presente. Cada grupo, à sua maneira, busca estabelecer aquilo que deve ser lembrado e como deve ser lembrado. Sendo assim, torna-se fundamental que as histórias e as memórias instituídas sejam revisitadas e olhadas sob novas perspectivas para que possamos compreender quais estratégias contribuíram para que elas chegassem até nós da maneira como nós as conhecemos.
Os museus se inserem nessa disputa pela relação estreita que mantêm com os campos da memória e da história. Dessa constatação emerge o papel social de tais instituições que não pode ser negligenciado. De acordo com o Mario Chagas5, a palavra “museu” tem origem na Grécia, no Templo das Musas, localizado em Crotona (século VI a.C.). As musas, na mitologia grega, são filhas de Zeus, deus grego identificado com o poder, e mnemósine (memória). Assim, segundo o autor, os museus são simultaneamente lugares de poder e lugares de memória. A partir dessa relação, os museus podem, conforme Chagas, ser “espaços celebrativos da memória do poder ou equipamentos interessados em trabalhar com o poder da memória” 6. Tomando o primeiro caminho, os museus representariam a memória dominante de um único grupo social, étnico, econômico, sendo espaços pouco democráticos onde predomina o argumento de autoridade. Já a segunda escolha aponta para um museu capaz de servir como instrumento para o desenvolvimento social, estimulando novas produções e abrindo-se para o diálogo com as diversidades culturais.
Considerando essas questões, buscamos, no Museu do Voto, investigar (e recontar) a história das experiências eleitorais no país. A história da Justiça Eleitoral começa no século XX, mas a história das eleições no Brasil é quase tão antiga quanto a chegada dos portugueses em nosso território. De lá para cá, o direito de votar e ser votado foi garantido, vetado, ampliado, restringido, instrumento utilizado por quem queria permanecer no poder, mas também símbolo do livre exercício dos direitos políticos.
Essas transformações ao longo do tempo tornam-se visíveis quando observamos a trajetória dos conceitos7 – palavras que traduzem ideias sobre uma realidade – que as sociedades em diferentes períodos elaboraram para pensar e orientar suas práticas eleitorais. Assim, para um mesmo vocábulo eleitoral – cidadão, por exemplo – foram atribuídos, ao longo do tempo, sentidos e conteúdos diferentes. A partir da investigação sobre tais sentidos e conteúdos é possível compreender como os conflitos políticos e sociais se estruturaram e quais soluções foram encontradas para enfrentar as questões específicas em cada época. Dessa forma, na curadoria do Museu do Voto, procuramos evidenciar os sucessivos sentidos dados aos conceitos político-eleitorais, os quais foram ressignificados pelas gerações até chegar ao tempo presente.
O projeto de curadoria do Museu do Voto também abarca a discussão sobre a forma como os sujeitos históricos agiram em seu tempo e projetaram o seu futuro. Ao olhar as experiências eleitorais vividas em cada período da história, percebemos que essas devem ser entendidas como um fenômeno complexo que se realiza em dois planos. Por um lado, as eleições são uma experiência oficial, tendo em vista que acontecem por iniciativa do Estado que formula as regras do jogo político. Por outro, há uma série de práticas experimentadas pelos que partilham do universo eleitoral, práticas essas que possuem uma lógica própria com pontos de aproximação e de distanciamento do quadro legal proposto oficialmente. Dessa forma, nesse projeto, buscamos explicitar nos processos e procedimentos eleitorais as articulações entre as experiências, memórias e tradições que as constituíam e os planos, projetos e desejos para o futuro que foram vislumbrados.
Para além dessas análises sobre a história eleitoral, entendemos que o Museu do Voto é um local onde as experiências passadas se encontram e podem ser ressignificadas e onde também um horizonte se abre, permitindo que pensemos, a partir das experiências ali representadas e daquelas vividas atualmente, um futuro em relação à democracia que queremos ajudar a construir.
Recorrendo à belíssima definição de museus tecida por Mario Chagas, entendemos que:
Eles são janelas, portas e portais; elos poéticos entre a memória e o esquecimento, entre o eu e o outro; elos políticos entre o sim e o não, entre o indivíduo e a sociedade. Tudo o que é humano tem espaço nos museus. Eles são bons para exercitar pensamentos, tocar afetos, estimular ações, inspirações e intuições8.
Nesse sentido, o museu tem como proposta ser um espaço de reflexão sobre o passado, o qual não é estanque, ao contrário, pode ser revisitado, reinterpretado. Por outro lado, a partir desse trabalho de reflexão, o museu procura também instigar no visitante questionamentos acerca do futuro: qual democracia queremos ? Que cidadania caberá nessa democracia?
Ao (re)contar a história eleitoral em nosso país, o Museu do Voto procura demonstrar que todos nós, enquanto sujeitos históricos, construímos nossa própria realidade. Quando percebemos o poder criador de nossas ações passamos a ter mais consciência dos nossos atos e dos seus impactos na sociedade. Assim, nasce a convicção de que os valores, os comportamentos e as práticas podem adquirir novos significados. Esperamos que o museu do TSE possa instigar nos seus visitantes a formulação de novas ideias e novas realidades – de uma nova democracia ou uma nova cidadania – contribuindo, assim, para um maior empoderamento político e cultural da sociedade brasileira.
1 Ane Ferrari Ramos Cajado é Analista Judiciário, lotada na Seção de Acervos Especiais, da Coordenadoria de Biblioteca da Secretaria de Gestão da Informação. Bacharel em História pela Universidade Federal da Bahia. Amanda Camylla Pereira Silva é estagiária da Seção de Acervos Especiais e estudante de História da Universidade de Brasília.
2 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Vol. 2, nº 3, Rio de Janeiro, 1989. Disponível em: http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf. Acessado em: 16 de novembro de 2012.
3 CATROGA, Fernando. Memória e História In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Fronteiras do milênio. Porto Alegre: Universidade / UFRGS, 200, p. 48.
4 Idem, ibidem, p.p. 53-54.
5 Mario Chagas é pesquisador e professor universitário, atuando na área de museologia, com ênfase em museologia social, memória social, instituições de memória e patrimônio cultural.
6 CHAGAS, Mario. Memória e poder: dois movimentos. Cadernos de Sociomuseologia. Museus e políticas de memória, vol. 19, nº 19, 2002, p. 62.
7 Reinhart Koselleck, historiador alemão, nos serviu de base teórica para o trabalho com a história dos conceitos. Koselleck propõe analisar os conceitos ao longo do tempo, buscando evidenciar seus diferentes sentidos em cada época. Segundo o historiador, os conflitos políticos e sociais de uma época devem ser lidos e entendidos dentro do seu horizonte conceitual específico.
8 CHAGAS, Mario. Os museus são bons para pensar,sentir e agir. Musas- Revista Brasileira de Museus e Museologia, Rio de Janeiro, nº 3,2007, p. 6.