Portas abertas para reaprender a enxergar o mundo
“A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos à frente”. A frase do escritor José Saramago resume a vida de Raimundo Nonato, do TRE-RN, deficiente visual
Desde pequeno, o servidor do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (TRE-RN) Raimundo Nonato Fernandes da Silva se acostumou a enfrentar as dificuldades da vida com resiliência, fé e perseverança. Nascido em Mossoró (RN), município a 280 quilômetros de Natal, capital do estado, ele viveu a infância e a adolescência na comunidade Estrada da Raiz, antiga favela da cidade, com alto nível de criminalidade e pobreza. Foi lá que Raimundo viu a mãe, dona Francisca das Chagas, perder cinco dos sete filhos, ainda bebês, para a desnutrição e a desidratação, bem como por falta de vacinação.
Veja o depoimento de Raimundo Nonato Fernandes da Silva.
Logo pequeno, ele percebeu que as dificuldades da vida existiam para serem superadas. Raimundo viu o avô, dois tios-avôs, três tios e o pai (Seu Luís Gonzaga) perderem a visão aos poucos, devido ao descolamento da retina causado por uma doença congênita. Ele, que também tem a mesma doença, em 2002, com 24 anos, perdeu a visão do olho esquerdo e, aos 38 anos, em 2015, já trabalhando no TRE-RN, a do olho direito.
Mas o mundo também se abriu para ele, mesmo com tantas adversidades. Filho de pai analfabeto e mãe semianalfabeta, Raimundo relata que os livros foram sua tábua de salvação. “Éramos realmente muito pobres. Não tínhamos televisão, nem mesmo rádio. Ler era a minha fuga, a única coisa que eu podia fazer para aprender sobre o mundo e para me afastar das influências e distrações da minha comunidade, algo, aliás, que se revelou muito bom para mim e para minha família. Sempre vi na educação a porta para eu sair daquele ambiente”, afirma.
Sonho realizado
Em 2005, já formado em Matemática e exercendo a profissão de professor de cursinho, ele soube do concurso do TRE e resolveu tentar a sorte. Ao pedir a um colega o Código Eleitoral para estudar, chegou a ser avisado de que “era melhor nem tentar, pois era muito difícil e havia muita concorrência, por ser o primeiro concurso do Tribunal no estado”.
Mas Raimundo já estava acostumado com os “nãos” da vida, e sabia o que precisava fazer para ir atrás de seus sonhos: estudar. Não foi surpresa quando ele passou no concurso, e a felicidade foi tamanha que ele se lembra da sensação de se achar rico. “O salário era tão mais alto do que eu já havia recebido na vida que minha sensação foi de estar rico mesmo e, com ele, pude ajudar meus pais”, conta.
Nos primeiros anos de Tribunal, Raimundo ficou lotado no cartório do município de Janduís. Dois anos depois, em 2007, foi para o cartório eleitoral de Currais Novos, onde atualmente é chefe.
Antes e depois
O servidor conta que a vida dele no Tribunal se divide em antes e depois de 2015. “Fiquei dois anos afastado, devido à perda completa da visão, e voltei em 2017. Enfrentei muitas dificuldades ao voltar. Não apenas de readaptação ou de acessibilidade, mas de julgamento de colegas e chefias que achavam que eu não era mais capaz. O meu maior desafio foi convencer as pessoas de que eu podia continuar trabalhando mesmo com a deficiência visual. São as pessoas a maior barreira para quem tem alguma deficiência”, ressalta.
Segundo Raimundo, foram os filhos, Thales (8) e Heitor (13), e a esposa, Érica, com quem é casado há 14 anos, a força que precisava para seguir em frente. “Eu precisava dar um bom exemplo para os meus filhos e mostrar que todo mundo tem dificuldades na vida, e que o que faz a diferença é o modo como você as enfrenta. Eu não tinha a opção de desistir, nunca tive: era preciso seguir em frente, de cabeça erguida, com fé de que conseguiria”, lembra.
Ele revela que o começo dessa adaptação não foi fácil. Raimundo estranhou os sintetizadores de voz, teve que literalmente aprender a andar no escuro, a escutar mais a vida e a “enxergar” o mundo de forma diferente.
“Mas soube desde pequeno que isso não seria o fim do mundo. Era me levantar e recomeçar. As pessoas só têm a exata noção do que é uma deficiência grave quando acontece com ela ou com alguém muito próximo. Se não, isso é uma abstração. Para mim, sempre foi uma realidade na minha família e tive em todos eles [familiares] bons exemplos de superação”, ressalta.
Este texto faz parte da série “Nós somos a Justiça Eleitoral”, que vai mostrar a todos os brasileiros quem são as pessoas que trabalham diariamente para oferecer o melhor serviço ao eleitor. A série será publicada durante todos os dias de fevereiro, mês em que se comemora o aniversário de 89 anos de criação da Justiça Eleitoral.
MM/LC, DM